A única vez que tive 4 pistolas simultaneamente apontadas para minha cara não foi em um assalto. Foi há poucas semanas. Eram homens fardados, sem identificação, do lado de fora de uma viatura parada em área litorânea feita privada para abrigar condomínios e empreendimentos de alto luxo. Em um panóptico com placas de "ligue se vir algo suspeito" espalhadas, fui amigavelmente parado naquela madrugada, com quatro 9mm apontadas, por ter estacionado sobre a sinalização horizontal da via para trancar o baú da moto - que, sem perceber, havia deixado aberto - e aproveitar para apertar um tanto mais o meu cadarço. Não era um assalto. Mas, ao ver a cena, foi o que pensei que seria. Afinal, fardas e viatura não me são um atenuante de tensão ou motor de confiança - muito pelo contrário. Sabe Deus com que serenidade, parei a moto e fui rendido e revistado. Tranquilo (e perplexo, sem saber o que se passava), respondia com firmeza e olhando nos olhos. Com isso, três deles decidiram abaixar as armas enquanto um outro ainda apontava. Fizeram-me abrir o baú. Perguntaram-me sobre o que eu fazia (ou carregava) de errado e sobre o movimento que consideraram suspeito - feito, aliás, quase 2km antes. Um deles reparou, apesar do escuro, na “justiça” tatuada em meu pescoço e cochichou algo com outro. Olharam meus documentos e checaram algo por rádio. Com o baú aberto, repararam na bolsa de couro. Disseram-me para abrir e mostrar o que havia dentro. Viram o Macbook Pro e, instantaneamente, a quarta pistola abaixou e passei a ser “senhor”. O pronome de tratamento não foi a única mudança. Depois de olhar a bolsa e remexer os objetos, um dos homens me pediu - por favor - que eu conferisse se estava tudo em ordem com meus pertences. Fiz a revisão de tudo minuciosamente. E, no processo, foi inevitável lembrar de outra abordagem, um tanto mais de uma década antes. À época eu era um adolescente, morador de periferia, estudante de escola pública, que fazia teatro e seguia ao terminal de ônibus para pegar o bacurau de volta pra casa. No corpo, diferente do sapato, calça jeans e bolsa de couro da abordagem de agora, eu seguia de chinelo, bermuda surrada, camiseta e uma bolsa nas costas (como eu gostava de andar). Fui parado. Revistado. Eram dois. Nem reparei na identificação. As armas - eram de calibre 38, e não 9mm, isso eu sei - estavam guardadas, sequer em mãos. Foi bem mais rápido. Tomaram minha carteira do bolso para olhar minha identificação e - surpresa! - ao tomar o transporte de volta para casa descubro que os R$ 10 que eu tinha haviam, misteriosamente, sumido após a abordagem. De R$ 10 roubados a “senhor, por favor, confira se está tudo em ordem com seus pertences para depois não ter problema”. Na saída, subindo de novo na moto, aquele que tinha reparado na tatuagem me pergunta com o que trabalho. - "Sou jornalista, tenho uma empresa de comunicação e sou professor em uma Faculdade do Recife". - "Ah, pensei que o senhor trabalhasse em alguma área da Justiça!", exclamou ele de volta, possivelmente aliviado com o fato de eu não pertencer ao establishment jurídico. Saio na mesma serenidade de quando cheguei e achei que seria um assalto. Não havia stress, taquicardia, nenhum desses sinais. Apenas questionamentos e muitas reflexões - de um jeito que só o vento na cara da pilotagem consegue suscitar (eu, que detesto dirigir, adoro pilotar). Em tempos de Rocinha, exército nas ruas, recorde de violência em Pernambuco e de minha cidade ainda como 10ª do País no ranking de assassinato de jovens (como era na época daquela abordagem em que me roubaram R$ 10), quatro pistolas na cara me fizeram pensar. E me perguntar, principalmente, sobre como tem sido para quem não tem um Macbook para ganhar o direito de ser senhor. Fizeram-me lembrar de todos os tiros (foram 17?) de revide que ouvi, em algum momento entre a infância e adolescência, naquele miliciano (a gente chamava era de justiceiro), na Rua São João. Na mãe de dois aliciadores (e filha de um pescador - minha casa era próxima do mangue), vizinha, que foi esfaqueada pelo ex-companheiro (lembro-me da poça de sangue no chão e do embrulho no estômago ao ver o corpo), alguns anos antes. Fizeram-me pensar em tudo isso. Não com sofrimento e angústia, como foi outrora. Mas com serenidade. A serenidade de quem olha para resiliência não como um verbete num dicionário ou um adjetivo da moda, mas como um imperativo ético de sobrevivência e transformação. Fez-me lembrar que é também por tudo isso que estou aqui e preciso sempre seguir com o que é minha missão. “Empoderar pessoas, instituições e comunidades para transformarem suas vidas e realidades através de estratégias de comunicação, marketing e negócios” é mais do que uma frase no site da Dialógica ou do que um pensamento em meu discurso. É parte do que sou, do para que existo. E, ainda que sempre se modifiquem os meios, é por isso (também) que ainda estou vivo. O que você tem a agradecer hoje? O que te move? Mantenha seu foco nisso e siga, sempre adiante. Missão é um certo misto do que te satisfaz com o que transforma o mundo (e, lembre, seu vizinho é o mundo; transformações não existem só em escala planetária). Por isso, em vez de investir seu tempo em sempre se questionar sobre o seu “grande porquê”, invista energia no equilíbrio dessa equação. Tem dado certo pra mim. E, tenho aprendido, isso tem muito mais a ver com disciplina, integridade e compromisso, e menos com autenticidade, criatividade e “organicismo”.
Jefte Amorim
Professor, jornalista e mestre em Desenvolvimento Local. CEO da Dialógica Comunicação Estratégica, tutor do Laboratório de Comunicação da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) e professor da especialização em Jornalismo Independente e do MBA em Marketing Digital da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Expert em Storytelling para Vida e Negócios e professor da Escola Humana.
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