"Todo ponto de vista é a vista de um ponto", sabiamente nos disse Leonardo Boff. A ideia, que nos relembra o quanto a leitura de mundo de um indivíduo é indissociável de suas crenças e vivências, é um dos pilares do que hoje chamamos de lugar de fala (expressão que qualquer indivíduo que navegue as águas turvas da web brasileira já ouviu - ou leu).
A verdade, costumo pensar, é como um globo gigante que se sustenta sobre nossas cabeças. De onde estivermos, na Terra, veremos um trecho enviesado que corresponde a uma realidade objetiva. Mas não podemos afirmar, ao enxergar esse recorte, que nele está o todo nem que todo o globo se parece daquela maneira. Por mais habilidade que se tenha, por melhores que seja as intenções, nenhum indivíduo consegue dar conta sozinho dessa totalidade (naturalmente diversa).
As ciências, em especial as Humanas e Sociais, já há algum tempo têm se debruçado sobre isso: os lugares sociais do saber científico e do senso comum, as dinâmicas de formulação das crenças, o papel do credo na assimilação do conhecimento, a inexistência da neutralidade humana, a necessidade do convívio e tensões do diverso para os avanços. É também por isso que surgiu a avaliação por pares (ou peer review) e se aprimora a metodologia: é um meio, ainda que às vezes falho, de validação de premissas e conclusões.
O método, na ciência, é isso: um conjunto de instrumentos de verificação que são úteis para um grupo específico de objetivos e investigações. É como uma caixa de ferramentas: existem, ali, vários instrumentos que servem à resolução de um problema específico, mas que, se utilizados fora de suas funções, podem gerar distorções ou não entregar bons resultados.
Imagine, por exemplo, alguém que tem em sua sala uma lâmpada que não acende: esse é o nosso problema. Entre as hipóteses (que são possibilidades sustentadas por evidências e conhecimento prévio) estão as ponderações de que o defeito pode estar na lâmpada, no bocal (acho receptáculo, soquete e plafonier nomes horríveis), na fiação (soa melhor que cabeamento) ou no interruptor. Quais são as melhores ferramentas para verificar? É a isso que responde o método. Afinal, não dá, por exemplo, pra esperar um bom resultado de alguém que usa o martelo pra trocar uma lâmpada queimada.
No entanto, o método não resolve tudo. No decorrer das investigações, os meus vieses podem me fazer ignorar variáveis e destacar outras. Além disso, como as conclusões, no fim das contas, são de quem investiga, a revisão por pares é um filtro a mais. Uma pessoa, por exemplo, pode, em sua investigação, encontrar um resultado usando um método adequado. Mas, na hora de concluir, generaliza para todos os problemas semelhantes a solução para aquele específico que encontrou.
Vou usar a estória da lâmpada para exemplificar.
Imagine que, ao tentar resolver a lâmpada que não acende, utilizando todas as ferramentas adequadas para isso, a pessoa descubra que, no fim das contas, era só a lâmpada queimada. Ela pode acabar concluindo que, se uma lâmpada não acende, logo ela está queimada. Isso foi uma verdade para o caso dela. Mas será que é um fato para todas as lâmpadas que não acendem? E se em outro caso for o bocal, a fiação, o interruptor? E se simplesmente houver faltado energia?
É por isso que existem, por exemplo, estudos de caso. É uma forma de buscar da conta da diversidade, analisando processos de casos diferentes com problemas - aparentemente - comuns. Assim, com um mesmo método e um mesmo problema de pesquisa, conseguimos olhar as circunstâncias por prismas diversos. É também por isso que existe a revisão por pares (e a contra-argumentação na ciência): como mecanismo de verificação das conclusões diante do método.
Há inúmeros outros mecanismos de verificação. Mas vou me limitar a esse escopo para dar conta do assunto aqui.
Lembro-me que há alguns meses, com a turbulência de uma gestão federal incompetente, anti-científica e autoritária, movida pelas distorções de suas paixões inflamadas, muitas tensões sugiram nas redes sociais pela vergonhosa sugestão do presidente em celebrar a ditadura de 1964. Acompanhei muitas publicações, notícias. E observei algumas reações e comentários. Um tipo específico de reação (coordenada e repetida há algum tempo) me chamou atenção: a atitude de redigir, diante das notícias de atrocidades do período, que sua família viveu bem, adquiriu patrimônio e cresceu durante o período.
Veja: quantas famílias alemãs, por exemplo, podem dizer o mesmo do período nazista? Ou famílias chilenas, com Pinochet? Ou famílias soviéticas, no holodomor? Há, nessa fala, dois sérios problemas: um mais profundamente ético e outro de representação da realidade. E é sobre eles que quero refletir.
Ao argumentar que sua família prosperou, em contraponto às evidências de cerceamentos, perseguições, tortura e morte, essa pessoa estabelece uma relação perversa: a de que, desde que não seja comigo, não importa que tenha havido tortura. Ou que, se minha família prosperou, todo mal ao outro pode ser justificado (e certamente é culpa dele). A ausência de empatia e o rompimento ético são flagrantes: é uma ferida grave no senso de alteridade, na capacidade humanitária de reconhecer ao outro o direito à dignidade (invalidando a sua dor).
Além disso, alguém que se coloca como no exemplo tenta, por sua experiência pessoal (seu lugar de fala), anular ou distorcer a realidade objetiva generalizada; usa uma exceção como se ela invalidasse a regra ou estabelece uma falsa relação causal (minha família prosperou, logo a ditadura fez o Brasil prosperar). A paixão pela experiência pessoal, ou a distorção de sua paixão inflamada por sua ideologia, cega-lhe dessa falácia contada pra si. Egocentricamente, tem a si mesmo como régua do mundo e rejeita qualquer experiência diferente em medida da sua.
Quando, enquanto sociedade, falamos em lugar de fala, é disso que estamos (ou deveríamos estar) tratando: a consciência de que aquele que fala o faz do alto de sua experiência, de um conjunto de credos e de uma formação sociocultural específica. Entender o conteúdo ideológico, o local geográfico, a história pessoal desse indivíduo nos ajuda a contextualizar a sua fala. E é aqui que entramos num terreno espinhoso.
A experiência individual dessa pessoa não pode ser negada: é a sua própria história. No entanto, é preciso entender que a sua história - ainda que partilhada por um grupo ou por um recorte social, como neste caso - não é universal nem suplanta o todo da realidade objetiva. Por isso é fundamental entender: a sua paixão não pode (ou não deve, na verdade) suplantar a ciência.
E é preciso lembrar: por melhores que sejam as intenções, nenhum indivíduo ou grupo é capaz de dar conta, sozinho, da diversidade de realidades do mundo.
Não se trata, aqui, de uma defesa do molde cartesiano ou iluminista. Emoções são tão necessárias ao viver quanto o raciocínio. Não quero dizer que "se devam afastar as emoções" ou que as ações devam excluir emoções para serem "racionais". Quero, ao contrário, dizer que as paixões devam ser incluídas em nossas reflexões ao ponto de percebermos de onde elas partem, o que significam e o quanto impactam em nossos posicionamentos e ações. Significa não anular, mas enxergar, acolher e incluir. Entendendo que, tendo paixões, elas não podem nos levar ao extremo oposto do racionalismo ao ponto de guiarmos a nossa identidade pela negação das evidências.
É como uma dança entre amor e justiça.
É essa compreensão, aliás, que nos ajudará a não cair na armadilha de usar lugar de fala como uma autorização a voz em debate. Desde que se respeite a ética e o método (e, é claro, se valorize a representatividade), todo indivíduo pode estar em qualquer debate. Alguém que se dedica a estudar um tema, ainda que não seja parte do recorte social do público pesquisado, por exemplo, não pode ser invalidado em seus achados por não compor os critérios de inclusão da população da pesquisa. Deve-se, é claro, entender os vieses que compõem a sua formação. E perceber que, por mais que investigue, não sente o que sente quem está do outro lado - que deve ter igual direito a se expressar e apresentar sua realidade ao mundo. Mas a história de quem sente, ainda que com a verdade de quem vive, não deve suplantar o que é ciência - e não pode ser tida como o todo da realidade.
É nisso, em específico, que às vezes as paixões da militância nos atrapalham. E conduzem, muitas vezes, à mesma reação apaixonada que se percebe nos casos como o de quem argumenta ter prosperado na ditadura: o ataque ao indivíduo interlocutor, ao lugar que ocupa, e não aos seus argumentos (ou à falta deles).
Não comparo, com isso, os dois episódios. Nem de longe. Estão eticamente distantes. Assim como não comparei o nazismo à nossa ditadura ao falar da reação de uma parcela de famílias de ambos os contextos históricos. Antes, a analogia está na reação que se percebe nos casos e no uso das paixões individuais como supressoras da ciência e negadoras do outro.
E veja: eu sou militante de um pequeno conjunto de frentes. Mas, no fim, busco ser muito mais cientista, inclusive das minhas paixões: percebendo-as, acolhendo-as, investigando-as. Ainda que muitas vezes erre. Afinal, só uma grande paixão pelo meu ego me faria achar que não me contradigo. Não há experiência humana sem contradição. E isso não é problema: o problema é buscar suprimir essa tensão ou preencher essa lacuna de coerência com a falsa linearidade absoluta de uma paixão.
Somos diversos, naturalmente. A diversidade é condição para vida. Por isso é preciso promovê-la e celebrá-la, com todas as suas tensões e contradições, em busca de relações de mais equilíbrio e amorosidade. Na ciência, nas organizações, na vida.
Jefte Amorim
Professor, jornalista e mestre em Desenvolvimento Local. CEO da Dialógica Comunicação Estratégica, tutor do Laboratório de Comunicação da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) e professor da especialização em Jornalismo Independente e do MBA em Marketing Digital da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Expert em Storytelling para Vida e Negócios e professor da Escola Humana.
jefte@comunicacaodialogica.com
instagram.com/jefamorim
t.me/facoacontecer
55 81 99612-4157
Comments